o cão constante

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Sem título número quatro

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Nos corredores frios e esventrados ecoam os gemidos dolorosamente arrastados, vozes suplicantes que emergem do âmago da humanidade que sucumbe sobre as macas e cadeiras e demais paredes vírulentas que circundam a arena dos que solicitam uma imediata cura ou anseiam por uma fugaz morte, tudo excepto o sofrimento horrendo que lhes esvai dos corpos e invade o território que os abarca. É um suplício contínuo, ininterrupto, por cada aliviado surgem dois ou mais amassados pela susceptibilidade de o corpo um dia, sem que algo possamos melindrar, acabe por ceder à fraqueza a que está destinado. Ao longo da enfermaria, os médicos enclausurados nos gabinetes e as enfermeiras em trânsito constante nos corredores, envoltos numa bolha invisível e intocável, permanecem inalterados e incólumes à dor que lhes rosna dos pacientes que nunca desistem de lhes tentar provocar qualquer acaso que lhes rebente essa bolha, para assim coexistirem no mesmo plano deste jogo de azar e infortúnio. Os decadentes que tudo tentam para usufruírem um pouco de misericórdia dos robustos, um pouco de piedade e poupança no sofrimento que se lhes ferrou na carne e nunca mais os largou, carraça sanguinária devorando a vitalidade do corpo e injectando dor bruta, doses maciças de dor e putrefacção volátil instaladas no corpo que se consome. Que fazer senão vaguear pelos corredores nada acolhedores da enfermaria, na esperança de presenciar uma dor e consequentemente um sofrimento maior que o nosso e resignarmo-nos à inevitabilidade de um dia não existir dor maior que a nossa.

Written by Luís Miguel Martins

Segunda-feira, 15 Novembro, 2010 at 01:57

Sem título número três

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De qualquer forma, nunca poderia regressar ao meu estádio anterior. Após o que fizera com estas mesmas mãos que em idade traquina o barro da terra acre entre os seus dedos trespassou, de qualquer forma, nunca poderia. Pudera eu reiniciar-me e encontrar-me naquele pequeno quintal que aos meus mirrados olhos era tão enorme quanto um castelo de cavaleiros pernetas com triciclos amarrados às árvores. Pelo menos o meu, quando não em uso, encontrava-se bem preso por uma fina guita à roseira do meu avô, nesse mesmo quintal enorme, lá, na sombra da videira que cobria parte do quintalejo, eu e o meu avô cujas faces desbotaram irremediavelmente da minha memória centrifugadora, ele amassava o barro no qual eu afundava os meus dedos e as minhas mãos e os meus braços e o meu peito e os meus sonhos estavam todos contidos naquele instante eterno quando com toda a fúria pueril apertava o barro de punhos bem cerrados na esperança que os cavaleiros e os piratas e os pirilampos e o vasco granja com os seus bizarros desenhos animados moldassem o barro com as suas formas através do elo condutor entre a mente e a matéria que eram os meus tortos dedos que sorriam enquanto o meu avô que tinha os olhos castanhos cor do céu fazia girar e girar e girar a mesa do barro e da imaginação que nos fazia percorrer mundos e aventuras sem número e sem regras. Nada. Não tenho lembrança de nada da minha infância. Os meus fazeres e não fazeres teriam sido outros, como um melhor homem possivelmente, se em mim ainda vivesse um pouco dessa criança. Convencimento tenho que ela se aviva de mim. E eu dela.

Written by Luís Miguel Martins

Sexta-feira, 22 Outubro, 2010 at 02:42

Sem título número dois

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Nunca me aborreço de pisar os antros onde a canalha das artes se bamboleia freneticamente ao som dos charros e das cervejas entornadas sobre a alcatifa pastosa que calco enquanto procuro a foda da noite. Não sendo eu uma mulher desinteressante, aliás, sendo eu mulher, é sensato concluir que a incumbência não é uma quimera. Basta apenas que o escolhido não esteja assim tão bêbedo que não consiga ficar duro para foder e que das entranhas liberte mais do que a baba e o hálito nauseabundo que até tenho prazer em sorver. É nojento mas sabe-me a promiscuidade. Sabe-me a homem sujo como deve ser todo o homem que descura a higiene mas privilegia o trato do intelecto. Só quero foder como o davis fodia com o trompete, só quero foder como o saramago fodeu a igreja, só quero foder como o joão césar fodeu a branca de neve. I haven’t fucked much with the past, but i’ve fucked plenty with the future, declama a smith bem ao meu gosto. E eu só quero que me deixem foder tudo como todos eles foderam os cânones instalados.

Written by Luís Miguel Martins

Quarta-feira, 20 Outubro, 2010 at 01:40

A doçura dos pequenos

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Parece que agora também querem roubar a doçura aos pequenos. Como se os preparassem assim para a amargura que os aguarda na idade em que as suas testas se irão encrespar. Que modo pungente de aniquilar a candura que neles vive, torná-los apáticos e resignados logo ali no recreio, no jardim, no pátio da escola onde correm e esbarram contra a dureza estipulada do que lhes é negado. Que infância os espera quando as suas mães, com as suas vozes a fugirem peito dentro e os braços resolutos que não abarcam a pequenez dos filhos, essas mães que não lhes poderão contar estórias das suas infâncias para que os olhos e as bocas que lhes brotaram dos ventres não saibam que antes deles existia um vocábulo a que chamavam alegria e que essa fugaz alegria morava no riso das crianças. A alegria, de acordo com o regedores, fora decretada tristeza, por ora em diante, até cessarem as medidas impostas para controlo resoluto dos cidadãos e das cidadãs propensos a comportamentos subversivos e contra-estadistas. E assim se impôs também a destruição de todo o leite achocolatado ao dispor dos residentes e não residentes, crianças e idosos, mendigos e pobres, vulgos classe média. A restante parafernália inútil da qual a população poderá subtrair alguma forma de lazer será brevemente alvo de indagação governamental, ao que não nos resta pouco mais do que o pão sem manteiga que barramos com as nossas lágrimas e alimentamos os nossos filhos sem boca para comer. Talvez ao menos os pequenos sonhem grandes estórias e se alimentem das palavras das quais já esquecemos a existência e restaurem o júbilo que deixámos extinguir das suas faces, tão inocentes que fomos.

Written by Luís Miguel Martins

Terça-feira, 19 Outubro, 2010 at 02:54

O velho rádio am

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A patrulha desceu pela rua do antigo campo de futebol, agora destruído pelos passados anos, embora nos seus tempos glórios fosse apenas um terreno arenoso com duas balizas, cada qual em seu extremo, e a passo lento endireitou para a praceta contígua ao campo, pouso habitual do grupo de jovens que, assim presumia a autoridade, esfaqueara um velho avôzinho que teimosamente resistira às investidas dos fedelhos quando estes lhe exigiram o antigo rádio a pilhas am, o qual tantos relatos de jogos de futebol ditara aos seus mancos tímpanos, mas que ainda assim, a custo, o faziam vibrar quando o clube do peito e da alma goleava o adversário, clube esse mesmo cuja terra amarela se tornara lamacenta quando o sangue vermelho vivo, que a sua caixa torácica rasgada não pôde mais conter, pulverizou o campo de vermelho tinto, cor mesma do clube em causa.

É conhecido que os idosos se dividem em duas categorias, aqueles que se barricam em casa e que da rua e das pessoas têm um pavor medonho, e os outros que, por tantos anos já terem passado entre os punhos, nada e ninguém temem. Óbvio é, no seguimento do ocorrido, que o falecido velho pertencia, como se também de um grupo marginal se tratasse, ao conjunto dos outros, esses que não conhecem o temor. Irónico todavia, ser morto pelas mãos dos quais aqueles pavor medonho têm. Se o senhor velhote em questão era dos tais que mais anos acarretavam sobre o corpo marreco, ainda assim, quando comparado com o seu antigo rádio, ainda mais velho que qualquer velho que a custo ofegava no mundo, verdadeira relíquia do engenho que alguns em tempos idos tiveram, quando comparado com o seu antigo rádio, o velhote mal a maturidade teria alcançado. E se, por razões notórias, a saúde do pobre senhor idoso rondava o limite da existência, apesar de não ter sido esse o motivo da sua morte, como se confirma, o rádio que sempre o acompanhava há muito que nem sequer definhava, pois para definhar ainda teria que ocasionalmente produzir algum ruído, ao que nem sequer um pequeno zumbido sintonizava. Pelo menos nunca alguém o escutara enquanto o velhote mouco cruzava a rua. Mas que não se pense que o coitado era daquela gente que, por muito enferrujada e enterrada alguma maquinaria estivesse, um lugar lá em casa teria, nada se punha no caixote sujo do lixo, tudo era coleccionável, mesmo que uso não constasse nas suas propriedades. A razão, a força motriz que obrigava o velho compadre a acarretar com o aparelho era outra, muito diversa das comuns que pairam sobre os outros objectos mundanos. O velho amigo casado já fora, mas sem descendência que se conheça. Resulta precisamente do acto do seu enviuvar que o afamado rádio am entendeu emperrar de vez. Maldição deste meu destino, finarem-se no mesmo dia as duas únicas vozes que comigo falavam, disse para dentro o velho triste de velório. Na noite seguinte ao enterro da mulher, o velho compincha resolveu que o melhor seria guardar o enferrujado rádio, pois pensou para fora, se da minha ida esposa retrato tenho que me console, ao rádio estupidez seria planear-lhe uma ida ao retratista, mais efeito que ele aqui fique na cabeceira da minha cama de viúvo, ao lado da imagem santa da minha defunta companheira, ela que mo oferecera quando da tropa voltei para casa de vez. Apesar da desolação, sua nova companheira de cama, o velho lacrimoso conseguiu a custo adormecer, quando, a meio sono meio despertar, ouviu a voz da falecida ali mesmo no quarto. Num instante dobrou-se sobre si mesmo, e sentado na cama, ainda com as pernas trémulas debaixo dos enrugados lençóis, levou as mãos à cara, resmungando, que merda de sonho este que já não me vai largar o resto das noites, ao que contrapôs a voz da mulher, desculpa se te acordei meu velhote caguinchas.

O milagre da tecnologia era tão grandioso que se conhecimento exterior do caso ocorresse, por certo estaria o pequeno rádio am enclausurado num laboratório governamental algures em nenhures. Prudente fora o velho ponderado, que nunca do rádio se iria ausentar, levando-o consigo em todas as deslocações, mas que somente sobre a sua mesa de cabeceira, junto à sua cama, no interior do seu quarto fechado, faria, não luz, mas voz divina. Embora se leve a crer que estaria explicado o motivo que levara o velho radialista a fazer finca-pé com os gatunos, sendo o objecto em questão algo tão transcendente, esse portal de comunicação entre a carne e alma, a razão absoluta, a visão que diante do pensamento do velho resoluto se fez vislumbrar e pernoitar para o sempre, foi algo tão simples como, é agora e aqui que tenho a oportunidade de me juntar a ti minha querida velhota. E de tão teimoso foi o vislumbramento, que lá pereceu o pobre velho saudoso.

A patrulha desceu pela rua do antigo campo de futebol, endireitou para a praceta contígua ao campo, e aí mesmo deteve o rufia do bairro, que sozinho mirava o descampado onde crescera a brincar e minguara ao matar. Mesmo envolto nos insultos e nos pontapés e socos desferidos pela polícia, que assim entendia velar o velho morto, mesmo depois de atado e atirado para o interior da carrinha descaracterizada das forças da autoridade, o agora miúdo de choro constante nunca retirara os olhos afogados do antigo campo da bola, transformado por ele e seus comparsas num campo de morte. Presente de corpo no tribunal, fora encaminhado para a clausura das grades de ferro da prisão durante alguns anos, os suficientes para qualquer indivíduo perder as forças e a sanidade, mas com a benevolência do magistrado que, acima da lei, deliberou que o jovem prestes a ser incluído no sistema prisional deveria ter algo com que se entreter, sendo muito sério o risco de passar de cliente prisional a morador do hospício. Concedeu-lhe então a possibilidade de levar algo seu para o interior da cela, ao que perante as escolhas possíveis, o réu dispôs, apenas quero a companhia do velho rádio pelo qual matei. O juiz, perplexo ao ponto de gaguejar em plena audiência, retorquiu, esse aparelho, que nem sequer funciona, consta como prova no processo, e além disso, quando abri esta excepção não me referia a que o senhor levasse um troféu para a cela. Troféu só conheço os de bola senhor doutor juiz, e embora tenha morto num campo de futebol, esse rádio para mim não é troféu algum, antes sim a cruz que da morte me falará e me salvará. Sensibilizado pela sinceridade do miúdo que a custo iria sobreviver na prisão, o alto juiz ordenou que findo o presente julgamento, o rádio am deveria ser entregue ao réu, na sua cela, prontamente e sem qualquer demora ou transvio.

Os camaradas de quarto do hotel de menos cinco estrelas, bem como muitos outros que deabulavam pela prisão, tocados ficaram pela tristeza e amargura das quais o arrependido padecia. Não por estar condicionado ao espaço da prisão e à vontade dos guardas e reclusos vizinhos, mas sim pelo genuíno remorso e desalento de alguém que não consegue atravessar os dias sem reviver a morte que cometeu. Os dias eram penosos, obesos, como se toda a prisão sobre os seus costados se firmasse, e só chegada a noite voltava a prisão a pesar sobre o seu espaço próprio. As noites, essas, trauteava ele com um sorriso abençoado cravado na face, de um lado a almofada dura que a moldava, do outro, ainda mais encostado à cara que o travesseiro sobre o qual repousava, colado ao ouvido flutuante, o velho rádio am, debitando boleros, cha cha chas, mambos, rumbas, salsas, toda a música que se pudesse tocar em Cuba passava no pobre rádio que não funcionava. Ora mais aconchegantes, ora mais vivaças, todas as músicas cantavam-nas sempre os mesmos intérpretes, esse duo de outro mundo, sublimes almas cantantes, que felizes do reencontro para todo o sempre eternamente duradouro, entoavam doces melodias para amparo e cuido do rapaz abandonado na cela, onde não lhe restava outro calor e afeição que os da velhota falecida e do velho morto.

Muitos anos decorreram, apesar da redução da pena, e passados estes, assim que oportunidade tiveram os pés do rapaz de pisar terra desbravada, à espera da liberdade do seu caminhar, oportunidade tiveram e dançantes foram no encalce do bairro de onde foram arrastados. Após algumas horas de trajecto, que o bairro nem perto nem distante ficava dos muros da prisão, chegou enfim o miúdo, mais homem de idade e de peito. Caminhava ele pelo jardim desconhecido, que viera substituir o antigo campo de futebol e de morte, e todos quantos na sombra das árvores estavam, pasmados se benzeram, tamanha fora a aparição que testemunharam, não fosse o jovem liberto a cortar caminho como o por si defunto cortava, com o mesmo obsoleto rádio am a pilhas, que som não emitia, sobre o ombro, entre a mão direita e o ouvido, ouvindo cantares de morte e de amor que nunca alguém ocasião alguma escutara.

Written by Luís Miguel Martins

Terça-feira, 31 Agosto, 2010 at 02:31

Sem título número um

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Contorcia os pés para dentro porque se recusava a pisar o chão em linha recta e não tropeçar. Coçava os olhos grandes porque não confiava no que via com a devida clareza. Baloiçava o corpo porque se deixava embalar pelas longas, mas suaves, ondulações da água que forma parte do seu corpo. Bocejava muito porque a vida, tal como lhe surgia, era entediante. Beliscava-se porque assim tinha a certeza que sonambulava. Falava pouco porque não havia nada para dizer. Dançava sozinha porque não havia música no ar. Comia pouco porque nada tinha sabor. Sorria muito porque assim não chorava. Acreditava ser feliz porque assim não se sentia triste.

Written by Luís Miguel Martins

Quinta-feira, 26 Agosto, 2010 at 04:51

Apontamento número um

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Hoje não escrevo. Ups.

Written by Luís Miguel Martins

Quarta-feira, 25 Agosto, 2010 at 00:00

Quando esta gota de suor

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Quando esta gota de suor, que nasce e não definha, quando esta gota de suor, que cheira a carne, quando esta gota de suor, que encharca a pele, quando esta gota de suor, que transpõe os sulcos e declives dos poros e das rugas, quando esta gota de suor, que empapa as palmas das mãos, quando esta gota de suor, que conflui num fio sinuoso sobre a testa, quando esta gota de suor, que tem parecenças de lágrima, quando esta gota de suor, que contorna os lábios, quando esta gota de suor, que cintila perante a luz oblíqua, quando esta gota de suor, que humedece o peito, quando esta gota de suor, que conhece todos os recantos do corpo, quando esta gota de suor, que estremece ao toque, quando esta gota de suor, quando essa gota de suor, quando estas gotas de suor se encontram, extenuados nos sustemos.

Written by Luís Miguel Martins

Terça-feira, 24 Agosto, 2010 at 02:19

Os cinquenta anos

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Cinquenta anos de existência comum neste romance que é a nossa casa, cinquenta aniversários celebrados ano após idade, tanto tempo se passou que já não nos recordamos muito bem de como tudo começou, mas que importância tem isso, o sumo que vai pingando doce e vagarosamente nunca cessa, não se esgota, até parece que é mais denso, tantos anos decorridos e não azedou, é como se pertencesse a uma casta que se encontra em nenhures, essa uva de bago morno que irrompe nos nossos peitos e nos aquece ao longo dos tantos invernos da nossa vivência, já não me recordo de alguma vez ter tido vida sem ti, é um sonho maldito imaginar-me sem ti sabias, só te quero aqui bem perto para te abraçar como o fiz na noite em que nos conhecemos, foi tanta a nossa entrega que os nossos peitos jovens não conseguiam conter todo o nosso amor, éramos mesmo uns miúdos, perdidos, longe das nossas terras, essas que saborearam os primeiros passos dos nossos pequenos pés, lembras-te dos teus primeiros passos, só me lembro do que passou depois de te amar, antes foi tudo um vazio, sinto-me sem terra e sem passado antes de ti, és tão eu que pensar em mim é ter-te a planar nos pensamentos, tão indissociáveis que somos já reparaste, no entanto aqui estamos, esta noite deveríamos celebrar estes cinquenta luares sob os quais nos aquecemos noites e dias neste palpitar ameno, aqui estamos separados por umas paredes cruas de enfermaria, mas sabes bem que estes muros não são suficientes para nos afastar, não me vês aí junto a ti, não sentes a minha terna mão pousada sobre a tua, sinto as tuas veias, sinto o teu sangue, vejo o nosso sangue do qual os nossos filhos brotaram, esse fruto que concebemos para herança dos dias, sem que nada importasse mais na terra que pára quando nos entristecemos, e porque estás triste, porque a tua almofada está vazia, ocupas outro espaço que não o meu, devias olhar para dentro e afastar essa melancolia tola, assim verias que nunca daí saí, sabes muito bem que estou aí com o meu braço sobre o teu peito, acreditas que consigo ouvir o bater do teu coração só com a minha mão, mais do que sentir a vibração do bater, de tanto o ouvir nem preciso estender o meu braço a procurar-te, escuto-o agora, aqui, longe de ti meu amor mas aqui mesmo ao teu lado. Agora dorme, sonha comigo e recorda-te de nós como sempre seremos.

Seis-Pés

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Dia não sucede, chuva caindo ou sol subindo, em que Joaquim Seis-Pés não se bamboleie pelas ruas da vila. Ora inclinado para a esquerda pelo copo de vinho meio vazio que espera na taberna, ora retorcido para a direita pelo copo de bagaço meio cheio que aguarda no clube recreativo, Seis-Pés, doutor honoris causa por ambas as casas, distinguido pela dedicação e amor à ilustre causa bebível, nunca se deixa vencer pela fraqueza dos membros, e persistente, se diante dos seus olhos turvos se dispõe a rua da tasca, embica para o clube recreativo, se em frente a este último se encontra, faz romaria à bodega. Ainda hoje não sei o que gosto mais, se beber, se andar. Mas eu acho que cá ando para beber e lá bebo para andar, esclarecia quando lhe perguntavam esses porquês.

Companhia, como bêbedo rústico que é, apenas do cadelo, como lhe chama, pois o pobre animal, puro pedigree de rua, tão trôpego quanto Seis-Pés, macho é, mas de artifícios tão mirrados que quem o olha não distingue se é cadela ou se é cão. Ninguém se lembra da mulher que tivera em tempos muitos passados e diluídos pela bebida. Se gorda era, se magra fora, alta talvez, baixa capaz ou morena de cabelos louros isso sim. Enfim, do seu ajuntamento, que Joaquim jura, pela saúde pouca do seu cadelo, que casado nunca foi, resta apenas a estória que lhe fez nascer o apelido popular.

Contam os mais velhos e corresponde a vila, que uma certa noite, daquelas que começam é ainda madrugada, advindo a manhã, a tarde, o crespúsculo, e só ele, o seu cadelo, um copito aqui e só mais um ali além, que bem não faz mas que mal nunca cai, foi Joaquim, na altura ainda não baptizado de Seis-Pés, foi Joaquim para casa, meio enviesado como lhe conhecemos, e arreou-se na cama ao lado da mulher, para assim destilar o álcool do dia entre os lençóis. Mas tão apertado e desconfortável na cama se sentia, que por momentos pensou ter entrado em casa outra que não a sua. Sem conseguir suportar a inquietação, Joaquim decidiu passar os olhos sob os lençóis, para averiguar, ou o mais próximo disso que o espírito ébrio lhe permitia, o problema. Esfregou os olhos bem esfregados para se aclarar a visão, e com a ajuda do indicador espetado na direcção do fundo da cama, começou a contar para si só, um, dois, três, quatro, cinco, seis. Repetiu, um, dois, três, quatro, cinco, seis. Com uma certa inquietação já franzida na testa, recomeçou a contagem, agora de si para fora, um, dois, três, quatro, cinco, seis. E outra vez e mais alto, um, dois, três, quatro, cinco, seis. Saltou para fora da cama, atirando os lençóis para o chão, e, de joelhos, com o nariz a meio palmo do fundo da cama e convencido de uma concentração que nunca tivera, voltou a contar, não carneiros saltitantes sobre o colchão, mas sim um conjunto ou dois de pés que sobre o mesmo se distendiam, cada qual em sua obstinada direcção, um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro. Voltou a deitar-se no leito conjugal, satisfeito por afinal apenas repousarem quatro pés na cama, excluindo os seus obviamente, que fora estavam e que se esquecera de somar. Com os lençóis novamente sobre a cama, voltou a tapar os seus pés, os pés da mulher e os restantes pés que por lá se encontravam, adormecendo sereno como se um miúdo fosse, para, na manhã seguinte, a mulher fugir de casa a quatro pés.

Written by Luís Miguel Martins

Sexta-feira, 20 Agosto, 2010 at 00:23

Parto

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Saliente como uma grande batata no interior de uma pequena formiga, a barriga da parturiente Albertina era um colosso nunca antes visto. A família, agregada em seu redor, com os olhos pasmados de incredulidade, ditava sentenças várias, seriam trigémeos, talvez quadrigémeos, senão mais. Que seria um parto arriscado, todos sabiam e ninguém dizia, mas sendo a maternidade um edifício que longe e dispendioso ficaria, e como nenhum dos Timóteos conhecera outra maternidade que a das mães que os entregaram à terra, mais razões não se procuraram para o disposto, chamou-se a parideira e o assunto ficou arrumado sob a almofada.

Como todas as parideiras, pelo menos não as imaginamos de outro modo, Lucrécia era uma figura avessa a todas as convenções. Falas curtas e rudes, andar desnivelado nas ancas, marcando passo a cada serviço que até aparentava não haver urgência na ida, e um corpo de elefante insuflado que parecia aumentar a cada parto que dava mão, como se absorvesse através da carne o inchaço esbaforido das panças das mães. Assim que mãos deitou sobre a barriga de Albertina, juízo breve logo fez, que só um bebé era e que fêmea seria. Por todos a mesma evidência pairou, que sendo apenas um único bebé, fêmea ou não fêmea, que isso importava, por certo teria tamanho tal que mais valeria abrir já a mãe, como se porca fosse, que até os guinchos já os tinha há dias e noites. Que a mãe seja porca ou não, que se me dá, que a faca não a abre isso sei eu. Mas já que de varas estamos falando, que me tragam banha de porco fresca, assim disse a parideira, assim se fez. Mergulhou as mãos no alguidar a transbordar de gordura, para depois se colocar entre as pernas de Albertina, as quais brutamente afastou com duas cotoveladas. Agora respire fundo, que a criança não sai mas entro eu, e, dito isto, enfiou ambas as mãos de uma só vez no ventre da mãe sofrida, e sem que o mais leve indício de couro cabeludo se vislumbrasse, untou com banha a futura criança ainda no interior do útero da mãe. Esperamos duas horas, que nem antes nem após vai a bebé nascer, rematou de seu mau feitio. E duas horas decorrentes, a mãe bufou os ares que tinha que bufar e pariu a pequena Francisca, feliz a família.

Limpava Lucrécia a banha de porco misturada com sangue e placenta que envolvia a bebé, quando num sobressalto a sua mão, embrulhada no lençol sujo que entretanto soltara, se deteve sobre o peito e a barriga da criança, e absorta, que nunca em sonhos tal lhe ocorrera, com dezoito pequenas protuberâncias entre os dedos gordos da mão anafada, anunciou, a todos quantos presentes estavam no fechado quarto, que a mãe seja porca ou não, já o disse, tanto me aquece, mas que tenho eu dezoito tetas na mão, isso tenho.

Written by Luís Miguel Martins

Quinta-feira, 19 Agosto, 2010 at 00:14

Os peitos roubados

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Respira o dizer que estas mesmas águas nem sempre foram doces e amenas. Vagueia o acreditar que em alturas em que o bréu engolia as serras e vales, o demónio subia à aldeia, forjado de garras de milhafre e zumbido de corvo, e detinha-se diante dos casarios onde habitavam as mulheres férteis da localidade, com o destino de lhes furtar os seios arredondados, forrados a carne e leite infinitamente branco. Asseveram que com o peito saqueado às mulheres, alimentava a orda de séquitos, moradores nas profundezas das rochas que formam os penhascos circundantes, para assim construir um exército tal que traria a penumbra definitiva à aldeia.

Aterrorizados e exaustos de verem as suas mulheres e filhas roubadas de parte da sua feminilidade, os homens iniciaram uma espera ao demónio. Assim que a besta se erguesse do fosso sem fim por onde dá entrada na terra, armados de todos os utensílios a que tinham mão, os homens atacariam o cornudo de rompante, sem declaração, sem guerra antecipada. E assim fustigaram a carne negra do monstro, cortando e perfurando até mais forças não terem. O demónio, ornamentado com chifres de bode, sustentava-se nas paredes do buraco, apenas esperando o fechar das feridas, para assim cair sobre todos os homens da aldeia e devorar-lhes a alma atravessada. Mas a criatura ogre não reparara no riacho que os homens lá no alto desviaram do percurso, e que iria incidir exactamente sobre o fosso onde padecia. Só escutou o rugir das águas que se soltavam numa fúria desenfreada, formando uma cascata tal que ainda hoje perdura na existência, empurrando a criatura para o fundo mais fundo, ininterruptamente, levando todo o sal das águas de então às feridas e ranhuras feitas pelo homem na carne do bicho infernal, que ainda hoje o tortura e aprisiona bem nos confins do poço inundado, submergido pela força das águas salgadas que todo o seu corpo pétrido absorveu.

Os peitos, esses, que violentamente foram roubados, nunca foram retribuidos, por obra e manha do demónio salgado. Ainda hoje, as mulheres e raparigas da aldeia, de peito raso e áspero, nadam as águas do doce rio incessantemente, na ânsia da procura do que lhes pertence e nunca devolvido fora.

Written by Luís Miguel Martins

Quarta-feira, 18 Agosto, 2010 at 03:11

Infecção

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Murmuram por aí a dentes cerrados que morreu do coração. Não como se morre do coração na aldeia. Não. Foi uma infecção que o matou. Mas não uma infecção que entra pelo corpo através duma invisível laceração, subindo pela corrente sanguínea como o barqueiro percorre as margens em busca de uma alma degenerada, corroendo cada orgão com tal vivacidade que após a sua passagem apenas resta uma amálgama de pus e carne que já não o é, até não sobejar nada mais no seu corpo além do coração que já soturno solta as últimas baforadas. Não. Não foi dessa forma. Não foi esse o mal que o engoliu. Foi o coração, cujas ínfimas divisões e recantos estavam, desde muito, inexoravelmente putrefactas. Nem já havia recordação de há quanto a sua mulher deixou de ouvir o bater no peito do marido. Apenas se recorda do cheiro. O cheiro que emanava do peito do marido, quando partilhavam a cama nos seus íntimos afazeres. Imaginava que o seu marido não tinha amor dentro de si, apenas ódio que borbulhava quando os seus suores se misturavam e ensopavam a cama. Quanto mais suor comungavam, mais verozmente a infecção descia do coração para o que restava de rosáceo no seu corpo gélido e azulado. Não foi o ódio que o incitou a falecer. Foi o amor que nunca entrou na sua carne que o suicidou.

Written by Luís Miguel Martins

Terça-feira, 17 Agosto, 2010 at 19:38